quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Educação em direitos humanos a policiais

             Quando se fala em direitos humanos a um policial de forma incipiente, deve-se, a priori, mostrar que ele próprio tem direitos, entretanto, assim como a sociedade de forma geral, tem carências e sofre com a falta desses.  

Os Direitos Humanos não devem ser confundidos com o direito dos manos”, como se resumissem a direitos à bandidos. Direitos Humanos são fundamentais, essenciais a todo ser humano, transcende a cidadania e o jurídico; sendo também valores ético-morais, projetos políticos, sociais e culturais relacionados a igualdade, liberdaderespeito a diversidade, a questão sexual e de gênero, racial, ambiental etc. 

A posteriori, o discente policial deve se conscientizar que, além dlutar por seus direitos, é seu dever profissional, ético e humanitário ser promotor e defensor dos Direitos Humanos de todos, independentemente de cor da epiderme, gênero, classe social; orientação sexual, filosófico-político e religiosa.  

Há algo tão importante quanto o supracitado, o escopo dessa educação, que não pode ser tecnicista, pragmática e separada da reflexão crítica, é evitar a barbárie. Dialogando com o filósofo alemão Adorno e o brasileiro Eduardo Bittar, poderíamos dizer que a educação em direitos humanos, e de forma geral, deve evitar o retorno de Auschwitz, do totalitarismo. Em complemento podemos citar a carnificina do Congo Belga neocolonialista, o genocídio (dos hutus contra os tutsi) de Ruanda nos anos 1990, nossa ditadura militar de 1964 a 1985.  

Os Direitos Humanos surgem no século 18 como pugna contra o absolutismo, já está no seu DNA a luta antitética ao abuso do poder, a violência, a desumanização, a barbárie, aquilo que retira a dignidade de um ser humano.  

Em consonância ao modelo de Auschwitz,  a crítica aos atos burocráticos cegos, sem reflexão e pensamento crítico, que obedecem sem questionarseguem um legalismo injusto, a razão calculista que não visa a dignidade e bem-estar humano. Estamos falando da crítica da filósofa Hannah Arendt à banalidade do mal, do mal banal, cotidiano e feito por pessoas nacionalistas, religiosas, pais de família e seguidoras da lei, como Adolf Eichmann, oficial nazista analisado na obra da pensadora durante seu julgamento em Israel.  

A principal finalidade de uma educação humanista, crítica e ampla sobre Direitos Humanos para policiais é evitar a banalidade do mal e o totalitarismo, seguida de perto pela defesa desses direitos, sua efetivação aos policiais e demais cidadãos. 

Por fim, mas não menos importante, o objetivo seria a criação de novas utopias igualitárias, libertárias e fraternas, e a concretização na vida prática das já existentes.  Razão demais é loucura, mas loucura maior é ver o mundo como ele é e não como deveria ser; frase baseada em memórias já gastas sobre leituras de Dom Quixote, que serve para a utopia de uma polícia cidadã que luta contra moinhos autoritários de vento.  

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Publicado originalmente no jornal Diário da Manhã no dia 20 de Outubro de 2021.

PUNIÇÃO NÃO É SINÔNIMO DE SEGURANÇA

             Ninício da década de setenta do século passado tivemos os primeiros sinais da crise do capitalismo de regime de acumulação “fordista” iniciada no final da década de sessenta, e que tem seu auge nos anos oitenta. Nesse momento há o aumento das desigualdades, empobrecimento de parte da população, aumento dos moradores de rua, como atesta historiador Eric Hobsbawn 

A resposta estatal é um estado neoliberal mínimo, enxuto, que diminui gastos com o social e aumenta com a punição, com encerramento em massa. A alimentação desse depósito social, que recolhe tudo que perturba a ordem é intensificado com a guerra àdrogas iniciada no governo Nixon e exportada para a Europa e América Latina. 

Em consonância com esse Estado soberano punidor , nos anos 1990, a política de tolerância zero travestida de policiamento comunitário, pois se baseia, pelo menos no discurso, na famigerada teoria das janelas quebradas. Essa política inaugurada em Nova York também é exportada dentro do pacote da globalização com mercadorias e produtos culturais, veja por exemplo os filmes brucutus/testosterona como Cobra 

Ao lado da diminuição em recursos previdenciários, para educação, saúde e cultura, houve incrementos punitivos, principalmente penitenciários; isso é mais claro nos Estados Unidos, mas foi copiado por França e Inglaterra, como mostra as obras dos pesquisadores da criminologia crítica Loic Wacquant e Jock Young.  

O Brasil, como bom importador subserviente, adotou todas as medidas acima, claro, guardando as devidas proporções limitadas pelas especificidades de nossa cultura, economia, política e sistema de segurança pública recém-saído de uma ditadura.  

Houve aumento de prisões, mortes por ações policiais no Brasil, entretanto não tivemos diminuição da violência criminal; irônica e desgraçadamente aumentaram também as mortes de policiais. 

Estado soberano pode prover punição, mas não segurança, parafraseando o criminólogo David Garland. Uma guerra acéfala a negros, pobres e periféricos, higienização das ruas e ataques a usuários de entorpecentes, enquanto criminosos do colarinho branco e de crimes ambientais gozam de liberdade e prejudicam toda uma nação não traz segurança; apenas punição para um grupo etiquetado, rotulado e estigmatizado como marginal, criminoso, inimigo.  

Investimentos em saúde, em transporte, revitalização das periferias, políticas públicas que atendam periféricos trariam mais segurança do que ações cosméticas e superficiais de punição. 

Enquanto a segurança for, ideologicamente, sinônimo de punição, seremos responsáveis pelo aumento da criminalidade, de injustiças e de filhos bastardos, como o CV e PCC, organizações criminosas que nascem nos ventres de nossas penitenciárias e voltam sua ira virulenta e mortífera para nossa sociedade.   

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PUBLICADO ORIGINALMENTE NO JORNAL DIÁRIO DA MANHà DIA 09 DE OUTUBRO DE 2021.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Sexismo e Violência

 

A violência contra a mulher é uma constante em nossa sociedade, e ela não é a-histórica. Antes da propriedade privada e do surgimento das classes sociais não podemos falar de uma violência, de uma relação social violenta contra a mulher. Após o surgimento da desigualdade social, temos também a desigualdade entre os sexos, com a opressão da mulher- sendo ela reprimida na vida pública e coagida na vida privada.

Na sociedade classista capitalista a realidade supracitada continua, e se intensifica com a mercantilização da vida, dos corpos; com a erotização e desclassificação da mulher como objeto, mercadoria. Nesse diapasão temos a violação dos corpos femininos que são vistos como propriedades por pais, maridos; como objetos por homens de forma geral.

Na luta feminina contra essa violência tivemos avanços, como criação de delegacias especializadas- DEAM’s a partir de 1985, legislações com a Lei Maria da Penha em 2006 e de Feminicídio em 2015. Entretanto sabemos que somente isso não resolve o problema.

A prisão não consegue diminuir o número de crimes de forma geral, e muito menos de violência contra a mulher.

A luta contra a violência doméstica passa por mudanças na ideologia sexista, através de uma luta cultural e da educação; de mudanças nas relações sociais de trabalho que desqualifica e exclui a mulher.

Não lograremos êxito com prisões se não tivermos acompanhamento dos homens agressores com psicólogos, monitoramento e trabalho educativo após a saída da prisão. Não temos uma ressocialização adequada com palestras, cursos e atividades desses homens envolvendo a questão feminina.

Apenas encarcerar e soltar pessoas estigmatizadas, e sem mudanças na totalidade social, será como assoprar para apagar fogo de um fósforo dentro de um prédio em chamas.

A chamada teoria de gênero tem suas limitações, pois coloca a situação apenas no plano “cultural”, nos papéis sociais dentro e uma cultura dita “machista”; mas acaba sendo mais uma ideologia que obnubila as relações de classe, a opressão da mulher e seu caráter histórico.  

Enquanto nos limitarmos a encarcerar e tentar mudar mentalidades a nível “cultural”, sem trabalharmos a totalidade social; e sem repensarmos a acompanhamento dos infratores fora das prisões, estaremos dando continuidade ao aumento da violência sexista contra a mulher.

[Publicado originalmente no jornal Diário da Manhã no dia 08 de janeiro de 2021.]

terça-feira, 29 de setembro de 2020

A cor negra dos homicídios no novo Atlas da Violência 2020

 

   Dia 27 de agosto de 2020 foi publicado o novo Atlas da Violência, nele encontramos dados sobre homicídios e, pasmem, temos a constatação que houve diminuição no número de homicídios nos anos de 2017 e 2018.

   No próprio Atlas há hipóteses para essa diminuição, como trégua na guerra entre facções criminosas, principalmente PCC e Comando Vermelho; envelhecimento da sociedade, com óbvia diminuição do número de jovens, correlação com estatuto do desarmamento etc.

   Mesmo tendo diminuído há estados onde a diminuição não foi tão intensa, e há tipos de homicídios que cresceram; esse é o caso do homicídio de pessoas negras. No Brasil os negros representam 75,7% dos homicídios, sendo 3,7 para cada 100 mil habitantes. Além disso temos uma diferença na diminuição de homicídios entre não negros e negros como atesta o próprio Atlas:

  Ao analisarmos os dados da última década, vemos que as desigualdades raciais se aprofundaram ainda mais, com uma grande disparidade de violência experimentada por negros e não negros. Entre 2008 e 2018, as taxas de homicídio apresentaram um aumento de 11,5% para os negros, enquanto para os não negros houve uma diminuição de 12,9%, conforme ilustrado pelo gráfico 18.

   A questão do negro passa pelo racismo, logo por uma realidade concreta racista e não apenas por uma ideologia racista. O racismo surge com a expansão marítima e comercial europeia, com a “necessidade” de mais mão-de-obra para as colônias, do contato crescente entre as raças; e da opressão e mercantilização de uma raça sobre a outra.

   Com a abolição da escravidão no século 19 no Brasil não tivemos a abolição das relações excludentes dos negros, e nem da ideologia racista, que é alicerçada nas relações racistas e cria a ideia, a inversão da realidade, que coloca o negro como inferior, marginal, preguiçoso, criminoso etc. Logo, os negros foram socialmente jogados na sarjeta, não foram incluídos no mercado de trabalho, na meritocracia, no serviço público; não tiveram o mesmo acesso ao ensino de qualidade.

   Claro que hoje há negros em todas as classes sociais, mas são predominantes nas mais baixas: na proletária, no lupemproletariado e no desemprego desclassificado.

   Também foram varridos pela vassoura higienizadora da urbanização para as periferias das cidades, como na destruição dos cortiços no Rio de Janeiro para construções de viadutos, bulevares e espaços para o comercio.

   Nesse diapasão os negros formam grande parte da população atual com baixa escolaridade, morando nas periferias com paupérrimos salários, transporte e saúde pública precária; são pessoas que engrossam as fileiras do subemprego, do desemprego e do mundo criminal mais perseguido jurídico, político e policialmente: roubo, furto, trafico de drogas; diferentemente dos crimes mais usuais de brancos ricos: estelionato, crimes de “colarinho branco”, como a corrupção, por exemplo.

   Com as más condições educacionais, urbanas, de empregos temos a soma da ideologia racista que coloca a cor da epiderme relacionada a preguiça, mau caráter, tendências criminosas etc. Nesse caldeirão são fervidas na mesma água negros, periféricos, jovens e com baixa escolaridade autores e vítimas de homicídios, já que o perfil é o mesmo.

   Enquanto os negros formam a maioria dos enlatados no sistema carcerário, que por si só não resolve o problema da criminalidade e violência, são também a maioria das vítimas de homicídios por uma máquina adaptada para moer carne preta. São esses negros, pretos e pardos conforme o Atlas e o IBGE, que são cooptados pelo tráfico nas bocas de fumo, que evadem das escolas, que tem dificuldade no acesso a empregos dignos e acabam no subemprego, caindo nos braços de fações criminosas e são os principais alvos da violência estatal policial.

   Deixo aqui um parêntese, há mortes de jovens negros por policiais que são justificáveis, mas isso não justifica a ‘necropolítica” do Estado, que fecha os olhos para os jovens negros sem perspectivas, sem empregos, marginais que engrossam as estatísticas mortíferas.

   Se não houver políticas públicas que visem a educação, melhorias urbanas, criação de oportunidades de emprego, reestruturação do sistema penitenciário com uma abordagem após saída do detento; e claro mudanças na sociedade que engendra a violência contra todos, mas principalmente contra o negro, teremos sempre essas melancólicas notícias e esses frios dados sobre a frieza da indiferença racial.

   Não bastam mudanças “culturais”, se não tivermos mudanças nas relações concretas que possam abolir o racismo, que a longo prazo só terá êxito com a extinção da sociedade classista racista. 

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Texto publicado originalmente no jornal Diário da Manhã em 26 de setembro de 2020.